segunda-feira, 21 de outubro de 2013

e/ou

Estamos separados por dois sofás

Unidos pela mesma inexatidão.

Ela abre a voz com um olhar similar ao de quem passa a confundir a rua mais habitual
E me fala de um vazio, inominável.
Não se refere ao seio parcialmente existente.

Quanto a mim, caio no esforço de pincelar as melhores palavras do meu deserto e entregá-la como uma oração de resistência, porque, assim, recolho-me de sentir a mesma dor. O mesmo vazio que, no meu caso, não encontra justificativa em nenhum membro pela metade.
O meu corpo, magro, segue com suas proporções corretas.

[O vazio que ele reveste deve ter algum seio mutilado que a minha jovialidade meandraniza]

Porque ver a vida se movendo
Enche a gente de graça.
Enche a gente de dor.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Antes do sangue

Quando eu nasci ele tinha dez anos, quase onze. Quando ele morreu, eu tinha treze. A única coisa em comum entre nós dois é que éramos filhos do mesmo pai. Isso deveria ser algo no mínimo especial, mas não foi. Não tivemos tempo nem vida para que fosse. A primeira imagem que eu tenho dele talvez me remeta aos meus quatro, cinco anos. “Lá vem aquele frango bastardo”, era uma frase habitual que eu simplesmente crescia reproduzindo sem que isso fosse notado ou repreendido. Uma das imagens mais claras que eu tenho relacionada a ele, na verdade, é dos meus seis anos, limpando o meu rosto de seu beijo assim que ele virara as costas. Na minha cabeça de seis anos de idade não era errado aquele homem me beijar no rosto- o meu pai, os meus tios faziam o mesmo. Mas é que aquele não seria um homem como o meu pai, como os meus tios. Pensamento que eu certamente achava “estranho”, mas não tinha agência o suficiente para declará-lo equivocado. O que significaria a palavra equivocado? Ele vivia num abismo paternal, fraternal. Vivia à mercê de um pai, clamando pela presença de um pai, gozando da existência de irmãos- fingindo que esse pai o tinha, verdadeiramente, como um filho, que esses irmãos o viam como um irmão- que era a maneira mais fácil que havia encontrado para continuar vivendo. Dos parentes que ele poderia chamar de seus, a realidade não deveria ser tão distante. Era para ele que todos os dedos gostavam de apontar, porque ele simplesmente era um homem de unhas feitas e pintadas à base, um homem de sobrancelhas aparadas, curvilíneas, um homem de voz delicada, um homem de maçãs do rosto acentuadamente avermelhadas. Provavelmente, um homem à imagem e semelhança de sua mãe. Mas todo esse referencial feminino, num homem, não cabia bem. Até que aos vinte e quatro decidiu pôr um ponto em suas linhas que mal tiveram vírgulas, mas que só tinham reticências- que, diga-se de passagem, escritas por outros. Uma vida integralmente redigida e pensada nos “dedos dos outros” não deve ser nem... alegre. Ele escolheu morrer à maneira preconizada por Judas. Só que não foi numa árvore. E nem era ele um traidor. E se traiu, traiu a própria possibilidade de viver em conseqüência do que era alheio. Só que o alheio é, inevitavelmente, inerente. Ou não? Só que as pessoas não se deram conta disso. As pessoas não querem se dar conta disso. Nos meus treze anos, a maneira mais fácil foi viver fingindo que aquele acontecimento trágico não me era inerente. Foi uma fatalidade sem igual. Entendem? “Foi uma fatalidade sem igual” era a maneira mais simples para todo mundo. E se os pêsames eram recebidos, o pensamento imediato era: “mas nem éramos próximos”. E como seríamos? Eu sei que nos meus dezesseis, a tal da fatalidade foi me tomando por inteiro, como um estalo que surge no centro da consciência e vai criando uma geografia pelo organismo, uma geografia de culpa, de culpa pelo alheio, pois aquilo fazia parte de mim de algum modo, era inevitável. A famigerada ironia da vida brotava ali, em mim. Eu que tive pai, que tenho pai, que tenho tudo que ele não teve. Parece que eu nasci pra viver a vida que ele não teve. Todos os dias, de algum ou de todos os modos, construo uma história que ele decidiu não construir, que não permitiram que construísse. Porque eu e ele teríamos algo a mais de comum além do sangue. Ele se foi sem nem poder sorrir de tal ironia. Sei que a breve existência dele, ironicamente, faz parte de mim. Elilson Duarte. 09/10/12, 02h03.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

(Des)Tino

Com as asinhas quase retalhadas pelo vento forte, voaram incansavelmente por longos dias e magras noites até encontrar um cacho retrô de lâmpadas incandescentes com a seguinte descrição em vermelho, rabiscada num graveto: Dá-me luz. Moradias para mariposas.

Foto de Nilton Leal.

Antologia da Esperança

A morte
[seca e concreta]
Não vale a pena e a saliva de ser cultivada.
Os corpos se entendem, sim. As almas também.
[Há tanta coisa a se fazer...pois toque um samba elzístico, seu moço!] Beeem alto! Isso, vai!
Vou-me embora para o mundo! U-ni-do
Vou-me. Ser feliz.
Quero me lembrar de tudo:

Tenho vontade de ir ao Catro, abraçar a minha avó.
A dor da perda tem o peso da vida. Isso deve ser amor.

Quero anoitecer.
Intensamente pensando nos sonhos e no que já cultivei.
Nessa vida inteira que há de ser.

Quero amanhecer.
Viver
Viver de corpo e alma
Renovando-me.
(Todas as manhãs a tua voz ao telefone me dá lições
[de sorrir).
(Todas as manhãs, a criança que descobre um mundo novo me dá lições
[ de crescer).
(Todas as manhãs, a busca pelo sabão que limpe a alma² me dá lições
[ de seguir).

Preciso me respeitar. Antes de qualquer coisa...³

E quando um novo tempo chegar
Encontrará minha alma lavrada, meu peito limpo e feliz,
Minha mente posta,
cada parte que me constitui, dentro de mim e dentro do outro,
abraçando os grandes acontecimentos que vêm, vêm
Mansamente como pombas.*

-x-
Apropriação do poema "Antologia", de Manuel Bandeira.
¹: referência ao meu haicai da solidão. a você.
²: sobre o meu "Resíduos".
³ Patrícia Tenório
*: Nietzsche.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Manderlay é Aqui.

"...e a grandeza épica de um povo em formação nos atrai, nos deslumbra..." Caetano e Gil, "Haiti".

Bem, eu nunca havia assistido “Dogville” até semana passada, como também ainda não vi uma série de “cult classics”. Gostei de Dogville, gostei mesmo. Mas, algo ficou a ser preenchido dentro de mim que me faz recorrer ao clichê: o bolo era ótimo, mas faltava a cereja. Como não gosto muito de cereja, a não ser que venha em forma de confeito refrescante, senti falta de uma cobertura mais saborosa. O complemento veio hoje quando resolvi assistir à continuação, o filme "Manderlay". Contudo, não estou aqui para escrever sobre o filme, nem somente sobre o quanto possa ter mexido comigo. Estou aqui apenas para escrever. Escrever. Talvez esteja escrevendo nessas linhas digitais sobre como nada que nos acontece é por acaso. Eu não vi Dogville "tardiamente" por acaso: vi porque precisava assistir Manderlay, hoje. Também não parei na primeira quinta-feira de fevereiro pra assistir Manderlay por acaso: eu precisava escrever. Fato é que a obra do agridoce Lars Von Trier me fez, na tarde de hoje, sair da caverna, motivando-me a interromper o hiato da minha escrita e subitamente renovar o meu Filosofia Introspectiva.
Poderia estar publicando como minha primeira postagem de 2011 o desenvolvimento dos fragmentos de contos, frases... que venho adiando, engavetando há dias, semanas, meses. E também não deve ser por acaso, o ócio. Enfim, quando terminei de assistir até a última linha dos créditos finais do magistral Manderlay com sua reflexão ambientada numa América Racista e Opressora dos anos 30, que tão bem reflete a América contemporânea, a América de sempre, tal reflexão conduzida pela riquíssima (em termos cênicos) personagem central Grace, que pode ser em si uma das faces da América, me deu duas vontades enormes. Uma delas era de aplaudir o cineasta e gritar que ele é incrivelmente foda na esperança de que onde ele estivesse sentisse uma sensação boa (e que não seria, pois, por acaso), enquanto que a outra vontade eu só sentia, mas não sabia intitular. Então, quis escutar o meu disco "Do Cóccix até o Pescoço" de Elza Soares. Precisamente duas gravações, "A Carne" e "Haiti", que falam, como o filme, sobre todo esse mar de desigualdades que banha cada ilha que somos nós e que, na interpretação visceral de Elza, figura já tão oprimida, ganham uma força imensurável.
Porém, fui levado a interromper a vontade de ouvi-la por alguns minutos quando fui atraído pelo noticiário repetitivo na televisão. Vi duas imagens estarrecedoras. Numa delas, em mais um ato homofóbico, um jovem, branco, recebia uma lâmpada florescente com toda força, no meio da testa, em plena Avenida Paulista. Na outra, um mendigo, negro, era amarrado por três monstros e estupidamente espancado. As imagens me deram aquele nó na garganta, aquela sensação de impotência traduzida pela minha cabeça que, acompanhada pelo meu olhar horrorizado, balançava quase que involuntariamente em gesto de negação, de indignação. Foi, então, que descobri que a outra vontade que senti era escrever, eternizar essa tarde fraseando-a num papel. Quis escrever e assim fazer algo, não me esquivar totalmente dessa situação. Situação que somos nós. Embora escrever seja pouco, mas é alguma coisa. Quando escrevemos, abandonamos o nada.
Assim, antes de me deixar guiar pela caneta no papel, fui até o meu quintal, ouvir no último volume as gravações de Elza, propagando-as ao morro que me contém. Cantando junto com ela, via além, além, bem além daquele morro sem poder evitar: Manderlay, a cidade fictícia do filme, é uma realidade atemporal. É uma realidade aqui ou lá, no Brasil ou na América. Somos na verdade, uma versão mais pobre dessa América. Como ela, somos um país multifacetado, expansivo, plural, ambicioso e estagnado socialmente em demasia. Somos no fim das contas, estadunidenses ou brasileiros, um mero povo em formação.

P.S.:Se você também assistiu ao filme, já ouviu as canções, viu as reportagens ou simplesmente leu este meu moinho literário em que a palavra "que" aparece vinte e três vezes, saiba que (vigésima quarta aparição) nada disso é por acaso.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Parelha



(Dedicado, também, à Analice Croccia)

É da graça de ter alguém que você possa parar na beira da calçada e olhar indo de costas ponte adentro, acima, abaixo, envolto pelas margens do canal-rio, pela fachada do São Luiz, pelos ônibus, pelas pessoas, pela algazarra suave da noite, pelo cansaço vibrante da lua que logo mais tem de virar sol. É essa graça de estar intacto na beira da calçada, com o olhos focados naquele corpo-alma celestial, tendo a certeza de que vai virar umas quatro, cinco, tantas vezes na geometria-percurso da ponte, sorrir, balbuciar palavras de longe e responder aos corações formados com os braços na cabeça ou com as mãos na altura do peito.
É da bênção de ter um sorriso para beijar. É da sorte de ter alguém que o desperte da sonolência interminável das manhãs para que seu dia possa começar. É do estado de paz imensurável que se sente quando unido: por um olhar, um sorriso, um toque, um abraço, o mundo parece estar em suspensão. É da dádiva de ter fotografias pulsando dentro do peito. A inefável arte de fotogr-amar.
Alegria seria pouco. Essa graça-bênção-sorte-estado-dádiva só poderia ser Felicidade.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

21 Gramas de Vermelho

Contornou silenciosamente o batom em seus lábios. Olhou-se no espelho bruscamente, não conseguia encarar a si mesma. Sua face era a memória que não queria ter. Manteve-se em frente ao vidro manchado de fungos alaranjados, mas de vista tampada. Com as pálpebras obstruindo a duplicação da realidade, buscava a plenitude do silêncio. O Silêncio que gritou-lhe um leve suspiro de sua avó. Então, abriu os olhos e deu uma guinada de 360° apreciando milimetricamente o seu universo vermelho. Era a predileção cromática que herdara da avó. Viviam imersas no vermelho. Paredes, roupas, móveis... O que se tinha, era pouco e vermelho.
Entoou seu olhar em direção à cama da avó. Suspirou vagarosamente. Beijou-a demoradamente na testa macia, sem acordá-la. Um beijo leve, devoto e amoroso. Contemplava sua avó com uma nostalgia antecipada. Um saudosismo incerto. Estava decidida. Deixou-lhe um bilhete corriqueiro dentro da amarelada Bíblia de cabeceira. Certificou-se de que tudo estava em sua devida ordem e partiu completamente vermelha, dos sapatos ao diadema, ao seu labor diário: trabalhava noite adentro.
Era meticulosa em seu ofício e cumprira normalmente o que era destinada a fazer. Mas, aquela noite pareceu mais curta que o habitual e cada minuto fora despretensiosamente premeditado, pré-meditado, cal-cu-la-do.
À beira do amanhecer, com o céu caiado por dentro de seus olhos, sentou-se numa esquina acinzentada. Despiu-se dos sapatos. Enrolou num papel rabiscado o apurado do serviço e guardou no meio de seus seios. Cuspiu as sobras de esperma da noite e, então, deglutiu sem demoras quantidade considerável de veneno estricnina. Antes que o sol surgisse completamente, entre espasmos, vômitos e bombardeios no coração, as cores foram padecendo uma a uma em sua vista semi-aberta. Até que restou a imensidade vermelha inerente aos quase mortos. Lembrou-se da avó. Com a cabeça trêmula encostada numa parede enfeitada de lodo, tocou em seus lábios um sorriso que ameaçava escapulir. Padeceu embalada pelo vermelho e através do quase sorriso se desprenderam seus 21 gramas restantes de vida. Vermelho-vida. 21 gramas que pesavam sua alma.